quarta-feira, 22 de agosto de 2012

quarta-feira, 2 de maio de 2012


Filhas da Maré

Guerreiras na luta pela sobrevivência

Por Prisciane Rodrigues
Lorena Soares   


Praia de Itapema a 21 km de Santo Amaro, em meio a casas com ambientes rurais, existem ainda mulheres, hoje idosas, porém lúcidas e determinadas a contarem suas histórias de trabalho intenso na maré.
Três mulheres, semelhantes de garra e luta para sobreviverem e criarem os filhos. Três vidas independentes que se cruzam em tempos diferentes no mesmo mar, na mesma areia, na mesma terra e na praia.


Dona Maria de Lourdes Santana, conhecida como Dona Chiquinha, 81 anos, nasceu e foi criada em Itapema, filha de pescador e marisqueira, que também plantavam em roça para garantirem o sustento familiar. Cresceu na mesma lida dos seus pais, trabalhando na roça e mariscando. Não aprendeu a ler nem escrever, embora tenha
frequentado à escola, diz ter sido uma criança travessa de apedrejar passarinho e bater em meninos e que “era virada, naquele tempo era a pena e o tinteiro, eu derrubava a tinta, as letras não entravam na cabeça, se insistisse demais eu ficava era doida”.
Teve nove filhos, duas de mesmo pai e os outros de pais diferentes, porém nunca dependeu de homem para seu sustento, dos pais de seus filhos só ouvia promessas que não eram cumpridas. Muitas dificuldades foram enfrentadas por Dona Chiquinha, certa vez quando gestante foi mordida por cobra e a criança veio a óbito com treze dias de vida.
Seus partos eram sempre feitos por parteiras, que também moravam em Itapema. Não conheceu os métodos contraceptivos, percebia a gravidez pela falta das regras, como se refere ao período menstrual. Pariu seu filho caçula aos 40 anos, e depois entrou na menopausa. Em nenhuma das gestações ela teve acompanhando médico. “Naquele tempo a mulher tinha que tomar remédio de folha para botar fora, aqui teve uma que ficou mal, passou quinze dias internada em Santo Amaro, quando voltou foi com a criança no caixãozinho, aí levaram para Saubara, eu nunca tomei nada. Ia me prejudicar? Se Jesus me deu, ele ia me dar força para criar”, diz.
Engana-se quem pensa que ela hoje vive sozinha. Viúva? “Não, eles morreu, mas aquele que passou por aqui perto é meu marido. Ficar sem pai e sem mãe [...] ia ficar sem meu companheiro? Eu é que não era! Sabe o que é ficar vinte e quatro horas sozinha dentro de uma casa? Só se fosse o diabo nos inferno! E nem ele quer ficar, que sai pra atentar o mundo”.
Criou seus filhos com leite materno, papa de farinha (quando tinha) e ao completarem seis meses, se alimentavam com escaldado de peixe ou frutos do mar. Farinha era o principal alimento depois do marisco, porém nem sempre era acessível ao povo, pois quando o preço era elevado, a compra do produto tornava-se difícil. Apesar da alimentação não ser muito variada e por vezes escassa, as crianças cresceram fortes e saudáveis.
Dona Chiquinha mariscava durante o dia e em noites de lua cheia. Até no período da gravidez ela não parava de trabalhar, quase paria uma de suas filhas mariscando, foi levada para ter a criança e o produto de seu trabalho do dia foi furtado
por outra marisqueira, que trabalhava junto. Nada tinha em casa para alimentação e “nem um tostão para comprar o gás para acender o bibiano”, como chama o candeeiro.
Ia a pé de Itapema à Saubara para vender o marisco e a noite quando chegava, retornava para a maré. Quando não mariscava, trabalhava nas plantações, pegava água na fonte para fornecer aos veranistas e assim receber algum dinheiro.
Sua irmã materna tentou tomar a casa que morava, mas como Itapema era como uma fazenda, cujo havia um proprietário que permitia aos moradores construírem suas casas, foi orientada a permanecer no terreno. “Fui pro mato tirei pau, carreguei, as forquilha, cheguei, armei um rancho, com dois quartinho, uma cozinha, [...] sentei-lhe a enxada cavei barro, o menino aqui [...] me deu o jegue, ele vinha na frente e eu atrás com a bacia cheia de barro, no dia de fazer esse barro não sabia fazer com a enxada, fiz com as mão, cabá tapei toda, depois de tapada fiz um barro mole reboquei toda. A senhora fez sozinha? “ Sozinha não, eu e Deus”. Foi nessa tapera que viveu e abrigou seus filhos, por muitos anos.
Dona Chiquinha, mesmo tendo uma vida difícil, jamais reclamou de suas condições financeiras. Sempre sorrindo, ainda possui seus próprios dentes apesar da idade. Mariscos têm cálcio que fortalecem dentes e ossos. Ela é saudável, não toma remédios para controlar pressão arterial, nem glicose, às vezes algum comprimido para dor na coluna, que toma por conta própria.
Atualmente há mudanças em sua casa, pois o barro e as forquilhas deram lugar a tijolos e blocos, seu fogão é a gás, contudo, ainda utiliza fogo a lenha, “por costume”, diz. É uma senhora simpática e agradável, às vezes meio nostálgica, de marejar os olhos ao relembrar o passado e as dificuldades pelas quais passou.
Diz-se muito grata a Deus por ter dado braços e pernas sadios e pelas boas vistas que sempre as permitiram trabalhar. Hoje, a marisqueira tem ordenado, é aposentada pela pesca. Foi alguém em sua porta propor o pagamento de uma taxa pela aposentadoria. Seu genro combinou com os filhos dela para ajudarem na quantia, “seiscentos mirreis”. Enfim conseguiram aposentá-la.
Ao redor de sua casa tem um grande terreno, com algumas plantações, e uma extensa camada de cascas de mariscos, catados ao longo de sua vida. A brancura das
cascas em contraste ao marrom do solo e o verde das plantas, dão um belo efeito visual ao ambiente.


Das marisqueiras da época de Dona Chiquinha, só restaram ela e Dona Nocita (83 anos), “as outras, Deus levou”, diz.
Dona Nocita Aleluia Mesquita de Cerqueira nasceu em Saubara e aprendeu desde os oito anos de idade a mariscar. “Aprendi a mariscar com minha mãe e com a vida, catava fuminho (bebe fumo), sururu, tirar ostra, essas coisas da maré eu sei tudo”.
Foi morar em Itapema aos 19 anos, casou aos 21, já tendo seu primeiro filho. “Vim pra cá com dezenove anos porque não aguentava mais trabalhar na Saubara e continuei a trabalhar do mesmo jeito.” Ajudava o marido na lida da roça e continuava a mariscar, teve oito filhos, mas atualmente mora sozinha. Completamente submissa diferente de D. Chiquinha, ela diz que ele não a deixava nem cortar os cabelos.
“Eu usava forquilha de pau com lascas de bambu, rede velha e o fogo embaixo para secar camarão”, diz. Com o tempo, isso estragou suas vistas, atualmente ela está operada de cataratas, não marisca mais, porém encontramo-la tratando baiacu, e ela nos explicou com muito cuidado e habilidade, como não deixar o fel vazar e envenenar a
carne, (o baiacu é um peixe temido por muitos por ter um fígado venenoso e poucas pessoas saberem tratá-lo) ainda vivos na bacia, eles se rebatiam e ela brincou “não sei quem quer morrer, quer é viver.”.

A história das duas se converge com a lida na roça, nos trabalhos árduos para criar os filhos, até mesmo no modo de alimentá-los, as crianças foram amamentadas e ainda bebês por volta dos seis meses comiam escaldados de baiacu ou mariscos.
Viuvou aos 50 anos, e ficou recebendo pensão por morte do marido. Continuou a mariscar. Não casou novamente. “Eu não quis homem para maltratar meus filhos”, diz. Ela não conseguiu se aposentar, e hoje vive com um salário mínimo.
Assim como D. Chiquinha, D. Nocita não foi alfabetizada, mas as histórias nesse ponto se diferem, pois ela não teve acesso à escola por falta de condições financeiras, sua mãe criara os filhos sozinha, e quando foi colocá-los na escola a professora exigia farda e seu pai não quis pagar. Nem ela, nem nenhum de seus irmãos foram alfabetizados. “Não tenho vergonha de dizer por que foi coisa da vida”.
Atualmente tem duas casas em Itapema, uma ela aluga para veranistas, a outra ela mora sozinha, porém acompanhada por galos, galinhas e passarinhos. Não aparenta saudades do falecido e nem se queixa por viver só. Um de seus filhos reside em Itapema e sempre aparece para vê-la. Não tem problemas de coluna, pressão ou açúcar, mas usa óculos escuros, para amenizar a claridade, já que está operada de cataratas. Apesar da solidão, Dona Nocita é sorridente e aparentemente uma senhora feliz.
“Perto daqui nesse bar, aí do lado, mora Suzana, ela também é marisqueira, agora ela também não está mariscando por conta de um acidente de moto, mas eu mariscava com a mãe dela, e depois que meu marido morreu fiquei tratando baiacu com ela”, informa.
Suzana na verdade chama-se Maria Inês de Barros Souza, é a marisqueira mais nova das três. “Esse seria meu nome de batismo, mas quando foram me registrar, a mulé do cartório disse que tinha uma cachorra com esse nome, aí minha madrinha colocou Maria Inês, mas aqui só me chamam de Suzana”, diz. Aprendeu o ofício com sua mãe quando tinha oito anos. Tem 46 anos e ainda trabalha na maré. Entretanto, está encostada pela pesca atualmente devido a um acidente de moto, no qual machucou seu pé esquerdo.
Benefícios como esse não eram possíveis à época das mais velhas, pois agora com uma contribuição em cima do valor comercializado, é possível receber além do auxílio-doença, salário maternidade e aposentadoria. D. Suzana, ressalva ainda que recebe nos períodos em que não é possível mariscar, “ os tempos são outros”.
“Quando não vou ali, parece que me falta alguma coisa”, diz ao apontar a maré.
Apesar de ser mais nova e ter vivido em tempos menos difíceis que Dona Chiquinha e Dona Nocita, Suzana também não aprendeu a ler nem escrever. Marisca sempre e vende em Itapema para o Hotel Enseada do Caeiro e por encomenda a pessoas de Salvador, Feira de Santana, Santo Amaro e de outras localidades que procurem frutos do mar.
Tem três filhos homens, mora junto com o companheiro, que é pescador e caseiro lá em Itapema mesmo. Em sua casa, complementa a renda vendendo bebidas e cigarros. “O movimento só é melhor no verão, porque no frio as pessoas não frequentam muito a praia”, diz Dona Jandira, marisqueira e amiga de Suzana.
Suzana é uma pessoa séria e meio tímida, mas uma coisa ela deixa transparecer bem que é seu amor pelo que faz. “Eu adoro mariscar”, diz. E assim ela parece feliz.
Por toda parte de Itapema é possível ver que a rotina de mariscar é constante, e também disputada, porque vem marisqueiras das praias vizinhas e até mesmo, veranistas para usufruir da bondade natural e diversidades em mariscos.






quarta-feira, 25 de abril de 2012

Licor de Cachoeira

Considerado o "melhor da região" tem hoje novos e diversos sabores


A interação de africanos e afrodescendentes com europeus de várias nacionalidades durante o período escravista é um dos fatores que originaram a riqueza e diversidade cultural popular no município de Cachoeira. Deve-se a ele o sincretismo religioso, com forte presença da cultura afro-brasileira e das manifestações do Catolicismo.
São essas manifestações e demais festas que deixam a cidade com movimento de turistas o ano inteiro. O ciclo de festas começa em 13 de março, com o aniversário da cidade; prossegue em maio, com a festa do Divino, e, de 21 a 25 de junho, com o São João e a tradicional feira do Porto. É também no dia 25 de junho que Cachoeira torna-se, a cada ano, desde 2008, a Capital do Estado da Bahia. Na primeira quinzena de agosto acontece a procissão de Nossa Senhora da Boa Morte; em 27 de setembro, a festa de São Cosme e Damião, e, em outubro, a de Nossa Senhora do Rosário. Na primeira quinzena de novembro, acontece a festa de Nossa Senhora D'Ajuda e na segunda quinzena a de Santa Cecília. Por fim, em 4 de dezembro, a festa de Santa Bárbara.
Um dos principais destaques do calendário de festas do município é o São João, que aquece o comércio dos licores de Cachoeira. Com fama de ser "o melhor da região", faz com que moradores das cidades vizinhas e turistas de outros estados e países procurem o produto durante todo o ano e tornem a cidade, "a capital do licor".
O mais procurado é o licor de jenipapo. Sua origem vem desde a época em que as terras do Recôncavo eram povoadas pelos índios tupiniquins, maracás e cariris. Os índios extraíam da polpa do fruto verde um líquido parecido com água, mas que em contato com o ar se oxidava e virava uma tinta entre azul escura e preta. Com ela os índios se pintavam e adornavam objetos. Foi dessa qualidade que derivou o nome jenipapo, do tupi-guarani nhandipab ou jandipa, por assim dizer, "fruto que serve para pintar".
Eles produziam também o cauim, uma bebida alcoólica feita da mastigação de mandioca, ou o suco de frutos, como o jenipapo, fervidos em recipiente de cerâmica. Ou seja, eles produziam o que hoje não pode faltar nos festejos juninos, o tradicional licor de jenipapo.
Hoje a cidade conta com mais de 20 fábricas, que produzem o licor de forma artesanal e guardam a tradição que é passada de geração a geração. Novos sabores apareceram com o passar dos anos, como: ameixa, acerola, amendoim, cajá, cupuaçu, chocolate, goiaba, graviola, maracujá, milho-verde, passas, tamarindo, tangerina, caju, etc.
O produto que é artesanal, dois meses antes das festas juninas começa a ser fabricado em escala industrial. São barracões com dezenas de tanques onde são armazenadas as frutas, numa espécie de infusão com álcool. Depois de dois meses as frutas são esmagadas em uma prensa. O líquido é coado e depois passado em uma segunda coagem. O licor é vendido na feira livre da cidade e em pequenos bares e quitandas da cidade, no atacado e no varejo, por preços que variam de quatro a sete reais.
As fábricas contam com três a quatro funcionários, que geralmente são membros da família, mas nas vésperas dos festejos chegam a contar com até vinte contratados.
O licor tem também a fama de ser uma bebida que esquenta as noites frias de São João, e de ser uma bebida afrodisíaca. Por isso a cada ano surgem sabores exóticos, como o "pitarola" (mistura de pitanga com acerola, fabricado por dona Angelina Cordeira, moradora da Vila Belém, mais conhecida como Tia Nem), e o licor de pimenta, fabricado por Roque Pinto. Os dois  fazem os licores mais procurados da cidade, e chegam a vender cerca de 10 mil litros por ano.
Assim como Tia Nem e seu Roque, a história dos outros fabricantes não é diferente. Ambos começaram fazendo licor para dentro de casa, para a família e os amigos que visitam as casas uns dos outros no período dos santos juninos, e quando se deram conta já estavam vendendo em grande escala. Eles garantem que o sucesso de seus licores é mantido em segredo. Apesar de todas as novas invenções de sabores, afirmam que 50% de suas vendas é do tradicional licor de jenipapo, o preferido!






quarta-feira, 18 de abril de 2012








Segredos do Recôncavo

Talentos inexplorados, arte e cultura em Castro Alves


A pequena cidade do recôncavo, Castro Alves, abriga grandes ícones que são em si mesmos a história viva, como os longevos Aurino Teixeira e Maria Eulina Novaes, a namoradinha de Castro Alves, e talentos, um tanto inexplorados como o escritor Vanderlei Nunes Rodrigues.
Castroalvense, mais conhecido como Zaga, ele ocupa a cadeira de Nº 12 da Academia de Letras e Artes de Castro Alves e é ator amador. Tem publicada a obra “Entre o Sonho e a Realidade”, que reaviva em nós a ideia de sonhar mais e acreditar em nossas escolhas. Dono da Companhia de Teatro Skandalu’s, que permanece de pé há quinze anos, devido ao esforço e dedicação de todos seus membros e de parcerias que se renovam com muita luta a cada novo espetáculo. 
  A CIA nasceu em março de 1995, com a finalidade de angariar fundos para uma festa de conclusão do curso de ensino médio. A primeira peça ensaiada pela trupe foi: “O Malandro e a Graxeira, no chumbrego da Orgia”, texto adaptado do autor João Augusto. A festa não aconteceu, mas nasceu naquele ano a Cia. Teatral Skandalu’s, fazia parte da trupe o Vanderlei, José Antônio, Ronilson Oliveira,Ivana, Elizangela, Célia, Tatiane Gomes, Cristiane Zimmer e Lílian, todos moradores da cidade e colegas do colegial. Essa primeira peça foi apresentada em Castro Alves no clube Palmeiras, no antigo Espaço 10 e também na cidade vizinha Santa Terezinha.



   No ano seguinte a Cia. Perdeu alguns integrantes, ficando apenas Vanderlei, José Raimundo, Elizangela, Ivana e passava a integrar à trupe Eliete.  Era preciso uma nova peça e Vanderlei escreveu “As Beatas”, a peça integrava os poucos atores que sobraram. Sem apoio financeiro e patrocinadores a peça só foi apresentada em Castro Alves. Em 1997 passou a  integrar a Cia. Mayanna Pacheco, interpretando uma personagem dissimulada da peça “As Beatas”.
  Em 1998, restou na Cia. apenas Vanderlei e José Antônio e durante esse ano ficou desativada. No ano 1999 a Skandalu’s retornou aos palcos castroalvenses com a peça “O Amor da Flor” do autor Vanderlei; com novas integrantes: Marta Nery e Jainara Barbosa.
  Meados do mesmo ano a Cia recebeu outros atores: Rafael Júnior, Silmar Pinheiro, Thyeme Medeiros, Ana Carolina e Ariana, logo nosso escritor produziu uma nova peça “E o mundo não se acabou!”, que foi apresentada no mês de setembro.
 A Skandalu’s organizou a “I Mostra de Teatro e Cultura de Castro Alves”, marcaram presença grupos de teatro de Salvador, Cruz das Almas, Cachoeira e Governador Mangabeira, em novembro de 1999. O evento durou três dias, levou entretenimento e cultura para a população carente de arte da cidade e ganhou destaque no jornal “A Tarde”.
  Outra peça escrita por Vanderlei, “Quem me chamou!”, ficou em cartaz janeiro e fevereiro de 2000. Em março do mesmo ano, mês em que é comemorado o aniversário do poeta Castro Alves, a trupe realizou na Praça da Liberdade o “Recital Poético” homenageando o também escritor e ex-prefeito da cidade, o longevo Aurino Teixeira.
   Na comemoração dos 500 anos do Brasil, foi apresentado um musical intitulado “Brasil, mostra a tua cara”. A Praça da Liberdade virou palco também para reapresentação de “As Beatas” e da peça “E o mundo não se acabou!”.
   Em 2001, o escritor dedicou-se a homenagear Maria Eulina Novaes, mais conhecida na cidade como D. Morena, a namoradinha do poeta Castro Alves, com a peça “Um grito de liberdade”.
    Alguns dos integrantes foram embora da cidade em busca de formação superior e de emprego, ficando a Companhia desativada por algum tempo.
   As atividades foram retomadas em março de 2009, com a produção local da Oficina e Montagem da peça “História de uma Lágrima Furtiva de Cordel” inspirada livremente na obra “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, com direção geral da arte-educadora e diretora teatral, Cristiane Barreto.
  A Cia desafiou-se em abril com a montagem da mesma peça, sob a direção de Vanderlei, apresentando-se na Câmara Municipal.



 A história da Companhia não se difere do desenvolvimento cultural da cidade, segundo Vanderlei os castroalvenses até tem um olhar voltado para as artes, é possível observar que a cidade tem muitos artistas plásticos, escritores, poetas, cantores, atores e musicistas. Só não encontram apoio do poder público que de nenhuma maneira investem nesses artistas. Declara que em seu livro “Entre o Sonho e a Realidade”, nota-se que o apoio foi de pessoas comuns e comerciantes locais.
 O belo trabalho realizado pela trupe, não é apenas algo que motiva a cultura local, mas também uma alavanca social influenciando os jovens a participarem das peças, de escola em escola divulgando os novos trabalhos e convidando os alunos para assistirem aos ensaios, eles passam a frequentar as oficinas e sempre são descobertos novos talentos.
 O escritor afirma que não segue nenhum ritual para desenvolver seus textos. “Às vezes vejo alguma coisa que me chama atenção e vou guardando (armazenamento de experiências) e cada dia vai formulando um personagem na mente e quando vou escrever já estou com quase toda a peça na cabeça. Mas uma coisa que faço antes de tudo é dar título, aí com certeza a inspiração flui.”
 Vanderlei como outros castroalvenses, possui a visão de sonhador. Frisa que vive tentando colocar a qualquer custo a cultura nos planos da cidade, mas o poder mantem os olhos fechados.
 A nova peça do escritor, que faz questão de atuar em todas elas, é “Os Amores de Jurema”, em cartaz na cidade.
 O sucesso da primeira e única Mostra de Teatro de Castro Alves e projetos como os recitais realizados em praça pública deveriam ser projetos rotineiros na cidade, apoiados pelos governantes, como forma de atrair turistas para a cidade onde viveu o tão famoso “Poeta dos Escravos”, Castro Alves, a fim de desenvolver a cultura local que abriga tantos outros grandes artistas.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

PEDRO ARCHANJO

 “... acho que sou um sociólogo fotógrafo querendo ser artista, e um fotógrafo sociólogo, querendo ser artista também.”

 É complexo traçar um perfil através de sua produção, de sua formação ou mesmo de sua vida pessoal, Pedro Arcanjo da Silva, ou simplesmente Pedro Archanjo, assim prefere assinar seus trabalhos com “H”, como o aconselha a numerologia. Filho do Recôncavo, nascido em Maragojipe, recebeu esse nome de seu pai, por inspiração em um personagem do livro Tenda dos Milagres, de Jorge Amado. Formou-se em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia, diretor do Centro Cultural Dannemann e fotógrafo.
 A ele é atribuído um denso conhecimento sobre a cultura do Recôncavo, isso se deve à convivência desde menino ouvindo os sons dos terreiros de Candomblé e passeando entre eles na adolescência em busca de namoradas. Essa convivência ficou em sua memória afetiva e como ele diz: “eu comecei a mexer com essas coisas de criatividade, de criação, de arte,... automaticamente deve ter saído da minha memória afetiva...”. E esse afloramento o levou a uma inclinação para o trabalho com a cultura de origem africana num sentido antropológico e etnológico, como é possível ver na maioria de suas fotografias.
 Seus trabalhos são reconhecidos em vários países, como Áustria, Argentina e Alemanha. Perguntado sobre qual o local em que seus trabalhos fizeram mais sucesso, ele diz que foi em Berlim, na Alemanha, onde teve a oportunidade de palestrar sobre o Recôncavo, dar detalhes do trabalho e mostrar com fundamentos sociológicos a ligação com o local de onde estavam vindas as fotografias. Pedro se mostra humilde quando admite não ter feito sucesso, mas foi esse trabalho apresentado em Berlim que mais o agradara.
 Aqui no Brasil, ele conta das dificuldades que teve para criar o Centro Cultural Dannemann e implantar a Bienal do Recôncavo, devido à elitização dos monopólios que ainda é possível ver nas pequenas cidades do interior: “ Eu acho que esse é o principal mérito do Centro Cultural, ter conseguido avançar nas discussões contemporâneas sem deixar de ser popular, sem inibir a participação popular. E também não aceitamos que a classe média, esse povo que acha que é o rico do Recôncavo, descaracterizasse o Centro Cultural, porque, nesses lugares, sempre quando os ricos não conseguem dominar, eles começam a dizer que ali é lugar de maconheiro, de veado, de prostituição, tenta ligar a arte a essas coisas, pra descaracterizar, ligando com coisas errôneas, fazendo uma visão distorcida”. 
 É bem interessante o aprofundamento que é feito quando explica que essa falta de reconhecimento da arte vem desde o período colonial, quando aqui se deu o mais extenso período da economia colonial portuguesa, com o ciclo da cana-de açúcar.
 Há um confronto entre duas forças, uma dos donos de engenhos de Portugal que vieram para implantar os engenhos de açúcar aqui no Recôncavo, os caras brancos, cobertos pelo preconceito e pelos traumas da Santa Inquisição e, de outro lado, os negros que vieram como escravos e que tiveram de usar todas as forças para se afirmar.
 “Então o ‘ser recôncavo’ se dá do confronto dessas duas etnias, dessas duas concepções de cultura, de vida, de arte, e se afirmam. Como tem o lado delirante, criativo da resistência dos negros, tem um lado conservador também muito forte dos senhores de engenho”, explica.
 Archanjo cita a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia- UFRB, como uma intervenção grande, capaz de modificar os hábitos preconceituosos, que vêm de outrora. A UFRB é um espaço que traz uma pluralidade, pessoas de vários lugares, com culturas diferentes, que vieram e invadiram as ruas de Cachoeira e de São Félix, do Recôncavo em si, transformando os costumes da população local e seus pensamentos.
 Essa inferência do Centro Cultural e da criação da Bienal, que já existe em sua décima edição, isto é, há vinte anos, influenciou no fazer artístico da Região. Nas escolas primárias, as crianças que antes desenhavam as coisas que cercavam seu campo visual, como coqueiros, barquinhos, o rio, casinhas, a família e o bichinho de estimação.Passaram a ter outra visão de arte, como a arte abstrata e das esculturas. Essa transformação imediata nas crianças, na população e nos artistas faz com que Pedro reconheça que houve influência da Bienal que se intensificou com a chegada da UFRB.

 O Trabalho Estético 

“ Acho que quando a gente trabalha de uma forma verdadeira vai sair o que está dentro da gente”

O fotógrafo descreve seus trabalhos referentes à cultura de origem africana como tendo dois sentidos, um mais antropológico e etnológico e o outro que é puramente artístico, que ele tenta expressar, mas que é vinculado a uma região e a ela se prende. Querendo desatar-se disto declara sempre ter tido vontade de fazer uma coisa que não tivesse compromisso em representar um lugar, que fosse algo estético. Explica que ao ler “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, e ver um filme que referencia com o livro, teve a ideia de trabalhar com oconceito do simulacro, do que é real e o irreal, onde as coisas parecem ser e não são, como é comum no nosso tempo.
 Viajando começou a fotografar os manequins nas vitrines da Europa, que são bem parecidos com as modelos de verdade, porque são feitos a partir das próprias modelos. Foi onde ele percebeu que podia brincar, provocando a curiosidade das pessoas, tentando fazer com que descobrissem entre as fotografias uma que fosse real, no meio de tantos outros irreais. 
Provoca a reflexão das pessoas sobre o momento histórico contemporâneo, quando tudo é transitório, em que o importante não é a obra de arte em si, mas sim a ideia que obteve para realiza-la. 
“Então você vê, o cara prega trezentos martelos nessa parede, você olha e diz: eu também poderia fazer um negócio desses, mas tem uma expressão estética que é tão importante, não é o fazer, é a ideia que você teve para elaboração do trabalho. E tudo fica sendo muito transitório, e tudo é de qualquer lugar e não é de lugar nenhum. É um momento que nós estamos vivendo dessa transitoriedade estética, dessa transitoriedade do momento estético contemporâneo, que eu acho que tem haver com o mercado financeiro”, argumenta o fotógrafo. 
Archanjo lembra que desde o Renascimento até a Arte Moderna, se expressa a arte sempre reproduzindo o real, a natureza, elementos da natureza e pessoas, principalmente pessoas como elas de fato são. Não se tinha essa preocupação de colocar a arte como mercadoria limitada ao financeiro, havia um trabalho muito artesanal. Cita Caravaggio que teve um tempo imenso para pintar o manto da rainha Sophia. 
 Foi a Revolução Industrial que em menos de cem anos transformou a sociedade burguesa como em toda história da humanidade não se tinha feito. Foram criadas máquinas a vapor, estradas de ferro, aberta novas estradas. “Quer dizer, construiu-se e destruiu-se coisas belas muito rápido”. Ocorreram grandes descobertas, rios e mares foram poluídos, acabaram-se as florestas e também o romantismo,“foi pra ganhar dinheiro, mesmo, de uma maneira profissional.”.
E a arte começa também a despreocupar-se em se ater ao que é real, o pintor já não tem mais a paciência que Caravaggio teve em pintar o manto da rainha Sophia, com toda riqueza de detalhes, as pinceladas ficam mais rápidas, começam a surgir esculturas cada vez mais abstratas. Esse interesse capital no mercado financeiro é que dá característica ao trabalho estético.
 Nesse sentido não mais importa a arte produzida, a permanência material da obra, mas o registro da sua manifestação.
 “Faz uma instalação no rio, por exemplo, coloca umas tintas no rio, que não vai ficar no rio, mas fica lá um gestual colorido no rio que depois o rio vai levar, a água vai levar. O que ficou? É a fotografia e o vídeo que você fez do negócio”, explica. 
Remete a nós com esse trabalho estético dos manequins e ao se afastar do compromisso com o regional, a esse processo da transitoriedade, e nos faz meditar do quanto estamos sendo materialistas, esquecemo-nos do nosso compromisso diário de exportar ao outro nossas emoções, em expressar nossos sentimentos. Hoje em dia tem-se preocupado muito com o estético, na imagem que o outro terá de nós, esquecemos até mesmo de olhar a nós mesmos.

terça-feira, 10 de abril de 2012


Carnaval sem folia

Depois de ficar quarenta dias e quarenta noites na Capital numa maratona de estudos, artigos, parágrafos, incisos, várias leis, enfim chegou a data da prova para o concurso da Previdência e foi como retirar um peso das costas. De volta para Cachoeira, mais um turbilhão de textos, pautas, artigos, seminários, comentários uma premiação a organizar e por fim o sucesso, a festa, a confraternização, os elogios.
Mais um recorte no semestre, e um Carnaval de prazos se expirando. Nada como estar em minha terra natal, Castro Alves, desfrutando do carinho dos meus familiares, vendo a bandinha passar, com os alunos do Colégio Imaculada Conceição todos fantasiados. É o gostinho da folia passando.
 O que quero mesmo é tranquilidade, ouvir os pássaros cantando quando eu acordar, respirar ar fresco, o galo cantando no terreiro, é sábado, dia de feira livre.
O beiju quentinho, o cheiro das frutas, bananas, laranjas, jacas, jambos, maças, peras. No mercado as carnes vermelhas, o cheiro fresco do gado, do sangue. Os vendedores cobertos de farinhas. A farinha de mandioca mais gostosa do mundo é daqui. Quilos e mais quilos, carnes e mais carnes, os conterrâneos fazem as compras e vão para a Ilha, é verão.
Eu fico aqui. Casa de minha mãe, de meu pai, de minha tia, de minha sogra. Comidas sem meu tempero, passeio na praça, ando descalça, tudo é aconchego e graça.
Uma piada nova, ou uma notícia antiga que se renova a cada vez que é contada. As dificuldades dos mais velhos, os passeios de antigamente, a lida na roça. Tudo se transforma numa lição de vida.
Na feira livre os abraços dos mais velhos ou mesmo dos novos que estiveram distantes por algum tempo a dizer: Olha só como cresceu! Como está mais gordinha! Já está casada? Já tem filhos? Está morando onde? Estudando ou trabalhando?
Do outro lado da feira os vendedores de roupa gritando feitos malucos para convencer-nos que estão ali o melhor preço, a melhor peça e a maior variedade: “Mulher que não se ajeita, o marido rejeita”, entre outros bordões.
As conversas vão rendendo e é aí que a gente vai se dando conta que por aqui nada muda. As pessoas nascem, crescem, se casam, tem filhos e ficam por aqui, ou vão embora a procura de uma profissionalização.
E a cidade permanece pacata, com suas figuras pitorescas, que dão todo um ar de alegria, algumas das tradições foram perdidas, outras reinventadas.
É vergonhoso ver como a mídia transforma a imagem de Castro Alves, distorcendo o que existe por lá, sem valorizar a cultura e as belezas naturais.

 Minhas primeiras percepções



Não é comum lembrar-se da separação do seio da mãe, o que normalmente ocorre por volta dos seis meses de vida. Comigo foi diferente, esse desligamento aconteceu exatamente no meu aniversário de quatro anos. Minha mãe, professora, dava aulas pela manhã e, quando ela chegava, ao meio dia, eu já estava sentada na cama esperando para mamar. Foi então que tive a surpresa: “Meu seio está doente”. Um assombro instantâneo; agora, o que eu ia fazer? Filha caçula, cheia de dengo, insisti, mas quando cheguei perto, meus olhos puderam ver, o mamilo estava completamente verde. Ainda assim abocanhei. Foi finita e única àquela decepção, o sabor amargo fez com que houvesse um distanciamento do antes tão doce contato materno. Anos depois soube que fora usado o sumo de folhas de hortelã para provocar o fim daquela fase de minha vida.
Tenho em mim que essa separação foi o marco para que eu pudesse ter o direito de ir e vir, daí parece que todo o resto da casa de meus pais passou a ter sentido. Nossa cozinha era ligada à de meus avós paternos e o quintal era o mesmo. Nele havia dois tanques, um pequeno, outro maior. Apesar de hoje saber que existem dois depósitos no fundo e um banheiro, lembro-me apenas de um dos depósitos, era lá onde meu avô guardava coisas que usava quando ia para a roça e todas às vezes eu ficava no pé dele perguntando suas serventias. Não lembro quais eram essas coisas, mas do sabor da carne de sol, que ele levava frita, com farofa, dentro de uma lata de leite em pó e trazia para mim e minhas irmãs depois de uma semana, eu jamais esqueci. Ainda há pouco, escrevendo este texto, em minha boca senti o sabor.
            Relembrando do meu direito adquirido, tenho em mente o bar de Sr. Vital, onde comprávamos pão, mortadela, tubaína e outras coisas de necessidade, ou ainda das idas para casa de tia Betinha, para tomar algo emprestado ou devolvê-los. Tanto o bar, quanto a casa, ficava do outro lado da rua. Atravessar a rua sozinha era uma grande conquista.
            Aos domingos, após lavar meus cabelos, minha mãe colocava, no meio do jardim, uma cadeira vermelha plástica, me sentava e dava uma boneca do tamanho de um bebê para eu segurar. Na minha rua mesmo, minha porque foi lá onde “me entendi como gente”, passávamos o fim da tarde. Não me lembro de minhas irmãs no jardim, lá era um lugar meu, de minha mãe, meu avô, um ou outro vizinho. Meu pai não costumava passar as tardes de domingo conosco, frequentemente ia com os amigos pescar ou caçar, junto com duas cadelas valentes, mas não me lembro de ter tido medo delas, que durante a semana ficavam amarradas na porta do quartinho de meu avô. Já era noite quando ele chegava, bêbado, provocando minha mãe. Amarrava as cadelas e jogava as caças na mesa da cozinha ou começava a prepará-las para comer, dependia da sustentação de suas pernas. Às vezes quando não se aguentava sobre elas minha mãe juntava a cama de minha irmã do meio à minha e o colocava para dormir.
Naqueles momentos eu o abraçava e o cheiro de álcool entrava por minhas narinas, sentia-me mãe dele, muitas vezes ele chorava ou eu chorava, chorávamos juntos.
Quando não viajava para caçar, ia à missa com minha mãe aos domingos pela manhã. Lá tinha um menino que cantava “Ave Maria” atrás do altar, eu achava muito lindo, e ficava curiosa para saber quem era. Nunca descobri, mas era um menino. Meu padrinho tocava violão, ele, minha madrinha, meus pais e outros amigos deles participavam da comissão da pastoral da família. Todos usavam uma blusa branca, com uma pomba e nomes em azul, que orgulhosamente mais tarde pude ler: Pastoral da Família. O final da missa ficara registrado com meu padrinho tocando e todos cantando: “Abençoa, senhor, as famílias, amém; abençoa senhor, a minha também”. Chegávamos em casa, meu pai trocava de roupa e ia para o bar. Quando voltava, quase sempre porque minha mãe tinha mandado uma de nós buscá-lo, era um quebra-quebra, ela perguntava para ele de que adiantava ir à missa, participar da comissão e fazer todas aquelas coisas em casa. Eu perdida nessa confusão só chorava.
Num desses domingos, minha mãe colocou meu almoço e eu ajoelhada na cadeira a balançava para frente e para trás, ela reclamava comigo, até que a cadeira escorregou e eu bati minha cabeça na parede. Estava vestida com uma camisolinha branca, abaixo da gola flores bordadas na cor vinho, presente da minha madrinha. O sangue escorreu pelas costas e minha mãe, desesperada, mandou uma de minhas irmãs ir chamar meu pai no bar. Quando chegou, ela estava lavando minha cabeça numa pia do lado de fora da casa, eu não entendia o desespero deles, quando me pegaram no colo e levaram-me para a maternidade, também na minha rua. Lá, enquanto o médico costurava minha cabeça eu pedia sorrindo que eles parassem de chorar. Uma injeção fez com que eu não sentisse dor, minha mãe explicou depois que era anestesia.
Fui à escola, não recordo do primeiro dia, quem foi me levar, nada disso. Lembro-me da professora Dadau, mostrando-me as cores, os bichos e seus sons. A professora auxiliar, Meire, me ajudava na hora do banheiro, do lanche, do cadarço desamarrado e foi ela quem me ensinou a fazer com proeza. Depois mudei de sala, acho que tive outras professoras antes de ir para alfabetização, mas Manuela e Deise, em especial Manuela, apresentou a família da “Casinha Feliz”, uma cartilha de alfabetização, que tinha Vavá, Vevé, Vivi, Vovó, entre outros personagens. Na hora de irmos para casa, ficávamos em fila atrás de uma de nossas professoras. Num dia desses eu estava atrás da professora Manuela, aguardando meu avô que era quem mais ia me buscar na escola, quando a professora tropeçou em mim e caímos, meu braço quebrou. Tive que engessá-lo, era um incômodo, principalmente na hora do banho.
Meu primeiro dente caiu quando eu já estava na escola, temia muito meu pai puxar e fiquei relutando até que um dia, quando cheguei do colégio, passei pela cozinha de minha avó e ela como sempre colocou alguma coisa em minha boca. Nesse dia fora um bolinho de carne, que depois de crescida aprendi com ela a receita, mas foi na hora do almoço, em minha casa, comendo uma farofa que ele caiu. Minha mãe fez com que eu cumprisse todo um ritual, joguei meu dente em cima do telhado e cantei a seguinte canção: “Dentinho, dentão, toma teu dente velho e dá o meu novão!” Esse ritual foi repetido todas as vezes que meus dentes caíam.
Tenho sempre a impressão de que aquelas confusões dos finais de semana duraram por muitos anos de minha vida. As lembranças são sempre muito fortes, mas quando completei cinco anos de idade eles se separaram. Foi uma briga feia, meu pai chegou ao ponto de bater em minha mãe. Se não o momento mais triste de minha vida, este fora o mais doloroso. Como fruto desse dia, carrego meu repúdio a toda e qualquer forma de vício que leve o ser humano a perder sua capacidade de raciocínio. Minha mãe interrogou qual de nós queria ficar com meu pai, a minha irmã mais velha quis, saímos de madrugada, andamos muito, eu, minha irmã do meio e minha mãe. Fiquei muito nervosa com tudo aquilo, sentia medo da noite escura e mais ainda do dia amanhecer, tudo se tornara incerto.
            Passaram-se alguns dias após a separação e descobri que meu pai não bebia mais, havia se convertido numa igreja evangélica e que iria se casar novamente. Antes disso fui morar com a família de minha mãe, e conheci meus avós maternos, meus tios e tias, primos, uma rua nova, e até uma bisavó. Eram muitas informações novas, mas minhas raízes e meu porto seguro sempre fora a casa de “vóinha”, minha avó paterna. Lá decidi ir morar com meu pai, após o casamento. Essa decisão foi tomada quando eu já tinha nove anos de idade e mais uma vez fui separada do “seio materno”.
Desta vez, era como se eu houvesse perdido o direito de ir e vir, que agora tinha outro significado. A viagem da magia das letras descoberta na cartilha “A casinha feliz”. A formação das frases, a leitura dos rótulos, meu deslumbre pelas placas de endereços nas ruas onde passava nos outdoors, nos anúncios das lojas, nas capas dos livros, enfim o gosto pela leitura tinha se especificado aos romances, as histórias envolventes dos livros de minha madrasta, professora de português, faziam com que eu perdesse horas naquele mundo de tantas palavras.
Meu irmão nasceu, e minha boneca das tardes de domingo havia se tornado um bebê de verdade, que chorava e ria, que tinha fraldas para trocar e lavar, mamadeira para dar. O tempo encurtou, mas meu desejo era terminar minhas leituras, a curiosidade pelo desfecho de cada história fazia com que a luz do meu quarto ficasse a noite toda ligada. Isso fez com que meu pai limitasse minhas leituras aos livros de gramática, geografia, história, ciências e matemática, disciplinas dadas na sala de aula.
Tudo que eu havia lido era guardado com precisão e sempre fantasiava com as coisas que iam acontecendo no meu dia a dia. Mudei de colégio quando fui morar com meu pai, novos professores, novos colegas. O tempo ia passando e o desejo pelos livros sumiu. O fato de agora só ler sobre coisas que eram cobradas nas avaliações contribuíram. A professora Rita, da quarta série do ensino fundamental guiou-me a duas coisas que gostei, apesar de nem sempre fazer bem. Conheci o livro “Oficina de texto”, histórias com temas livres para desenvolver, textos para ilustrar e colorir. Tomei gosto pela coisa, e na maioria das vezes, em casa, no meu diário cultivava esse aprendizado. A outra coisa que me encantara foram as formas de expressar, através de dramatizações com meus colegas, os textos do livro de português.
Não gostaria de ter abandonado meu hábito de ler. Minhas leituras sobre o mundo não vieram das coisas que li, mas das coisas que via e vivia. Ainda hoje procuro reabilitar-me a essa prática, pois acredito que só assim poderei ver através dos olhos do outro, e ponderar minhas opiniões através das de outras pessoas, tornando-a crítica, mas fundamentada em outras experiências e não apenas nas minhas.