terça-feira, 10 de abril de 2012


 Minhas primeiras percepções



Não é comum lembrar-se da separação do seio da mãe, o que normalmente ocorre por volta dos seis meses de vida. Comigo foi diferente, esse desligamento aconteceu exatamente no meu aniversário de quatro anos. Minha mãe, professora, dava aulas pela manhã e, quando ela chegava, ao meio dia, eu já estava sentada na cama esperando para mamar. Foi então que tive a surpresa: “Meu seio está doente”. Um assombro instantâneo; agora, o que eu ia fazer? Filha caçula, cheia de dengo, insisti, mas quando cheguei perto, meus olhos puderam ver, o mamilo estava completamente verde. Ainda assim abocanhei. Foi finita e única àquela decepção, o sabor amargo fez com que houvesse um distanciamento do antes tão doce contato materno. Anos depois soube que fora usado o sumo de folhas de hortelã para provocar o fim daquela fase de minha vida.
Tenho em mim que essa separação foi o marco para que eu pudesse ter o direito de ir e vir, daí parece que todo o resto da casa de meus pais passou a ter sentido. Nossa cozinha era ligada à de meus avós paternos e o quintal era o mesmo. Nele havia dois tanques, um pequeno, outro maior. Apesar de hoje saber que existem dois depósitos no fundo e um banheiro, lembro-me apenas de um dos depósitos, era lá onde meu avô guardava coisas que usava quando ia para a roça e todas às vezes eu ficava no pé dele perguntando suas serventias. Não lembro quais eram essas coisas, mas do sabor da carne de sol, que ele levava frita, com farofa, dentro de uma lata de leite em pó e trazia para mim e minhas irmãs depois de uma semana, eu jamais esqueci. Ainda há pouco, escrevendo este texto, em minha boca senti o sabor.
            Relembrando do meu direito adquirido, tenho em mente o bar de Sr. Vital, onde comprávamos pão, mortadela, tubaína e outras coisas de necessidade, ou ainda das idas para casa de tia Betinha, para tomar algo emprestado ou devolvê-los. Tanto o bar, quanto a casa, ficava do outro lado da rua. Atravessar a rua sozinha era uma grande conquista.
            Aos domingos, após lavar meus cabelos, minha mãe colocava, no meio do jardim, uma cadeira vermelha plástica, me sentava e dava uma boneca do tamanho de um bebê para eu segurar. Na minha rua mesmo, minha porque foi lá onde “me entendi como gente”, passávamos o fim da tarde. Não me lembro de minhas irmãs no jardim, lá era um lugar meu, de minha mãe, meu avô, um ou outro vizinho. Meu pai não costumava passar as tardes de domingo conosco, frequentemente ia com os amigos pescar ou caçar, junto com duas cadelas valentes, mas não me lembro de ter tido medo delas, que durante a semana ficavam amarradas na porta do quartinho de meu avô. Já era noite quando ele chegava, bêbado, provocando minha mãe. Amarrava as cadelas e jogava as caças na mesa da cozinha ou começava a prepará-las para comer, dependia da sustentação de suas pernas. Às vezes quando não se aguentava sobre elas minha mãe juntava a cama de minha irmã do meio à minha e o colocava para dormir.
Naqueles momentos eu o abraçava e o cheiro de álcool entrava por minhas narinas, sentia-me mãe dele, muitas vezes ele chorava ou eu chorava, chorávamos juntos.
Quando não viajava para caçar, ia à missa com minha mãe aos domingos pela manhã. Lá tinha um menino que cantava “Ave Maria” atrás do altar, eu achava muito lindo, e ficava curiosa para saber quem era. Nunca descobri, mas era um menino. Meu padrinho tocava violão, ele, minha madrinha, meus pais e outros amigos deles participavam da comissão da pastoral da família. Todos usavam uma blusa branca, com uma pomba e nomes em azul, que orgulhosamente mais tarde pude ler: Pastoral da Família. O final da missa ficara registrado com meu padrinho tocando e todos cantando: “Abençoa, senhor, as famílias, amém; abençoa senhor, a minha também”. Chegávamos em casa, meu pai trocava de roupa e ia para o bar. Quando voltava, quase sempre porque minha mãe tinha mandado uma de nós buscá-lo, era um quebra-quebra, ela perguntava para ele de que adiantava ir à missa, participar da comissão e fazer todas aquelas coisas em casa. Eu perdida nessa confusão só chorava.
Num desses domingos, minha mãe colocou meu almoço e eu ajoelhada na cadeira a balançava para frente e para trás, ela reclamava comigo, até que a cadeira escorregou e eu bati minha cabeça na parede. Estava vestida com uma camisolinha branca, abaixo da gola flores bordadas na cor vinho, presente da minha madrinha. O sangue escorreu pelas costas e minha mãe, desesperada, mandou uma de minhas irmãs ir chamar meu pai no bar. Quando chegou, ela estava lavando minha cabeça numa pia do lado de fora da casa, eu não entendia o desespero deles, quando me pegaram no colo e levaram-me para a maternidade, também na minha rua. Lá, enquanto o médico costurava minha cabeça eu pedia sorrindo que eles parassem de chorar. Uma injeção fez com que eu não sentisse dor, minha mãe explicou depois que era anestesia.
Fui à escola, não recordo do primeiro dia, quem foi me levar, nada disso. Lembro-me da professora Dadau, mostrando-me as cores, os bichos e seus sons. A professora auxiliar, Meire, me ajudava na hora do banheiro, do lanche, do cadarço desamarrado e foi ela quem me ensinou a fazer com proeza. Depois mudei de sala, acho que tive outras professoras antes de ir para alfabetização, mas Manuela e Deise, em especial Manuela, apresentou a família da “Casinha Feliz”, uma cartilha de alfabetização, que tinha Vavá, Vevé, Vivi, Vovó, entre outros personagens. Na hora de irmos para casa, ficávamos em fila atrás de uma de nossas professoras. Num dia desses eu estava atrás da professora Manuela, aguardando meu avô que era quem mais ia me buscar na escola, quando a professora tropeçou em mim e caímos, meu braço quebrou. Tive que engessá-lo, era um incômodo, principalmente na hora do banho.
Meu primeiro dente caiu quando eu já estava na escola, temia muito meu pai puxar e fiquei relutando até que um dia, quando cheguei do colégio, passei pela cozinha de minha avó e ela como sempre colocou alguma coisa em minha boca. Nesse dia fora um bolinho de carne, que depois de crescida aprendi com ela a receita, mas foi na hora do almoço, em minha casa, comendo uma farofa que ele caiu. Minha mãe fez com que eu cumprisse todo um ritual, joguei meu dente em cima do telhado e cantei a seguinte canção: “Dentinho, dentão, toma teu dente velho e dá o meu novão!” Esse ritual foi repetido todas as vezes que meus dentes caíam.
Tenho sempre a impressão de que aquelas confusões dos finais de semana duraram por muitos anos de minha vida. As lembranças são sempre muito fortes, mas quando completei cinco anos de idade eles se separaram. Foi uma briga feia, meu pai chegou ao ponto de bater em minha mãe. Se não o momento mais triste de minha vida, este fora o mais doloroso. Como fruto desse dia, carrego meu repúdio a toda e qualquer forma de vício que leve o ser humano a perder sua capacidade de raciocínio. Minha mãe interrogou qual de nós queria ficar com meu pai, a minha irmã mais velha quis, saímos de madrugada, andamos muito, eu, minha irmã do meio e minha mãe. Fiquei muito nervosa com tudo aquilo, sentia medo da noite escura e mais ainda do dia amanhecer, tudo se tornara incerto.
            Passaram-se alguns dias após a separação e descobri que meu pai não bebia mais, havia se convertido numa igreja evangélica e que iria se casar novamente. Antes disso fui morar com a família de minha mãe, e conheci meus avós maternos, meus tios e tias, primos, uma rua nova, e até uma bisavó. Eram muitas informações novas, mas minhas raízes e meu porto seguro sempre fora a casa de “vóinha”, minha avó paterna. Lá decidi ir morar com meu pai, após o casamento. Essa decisão foi tomada quando eu já tinha nove anos de idade e mais uma vez fui separada do “seio materno”.
Desta vez, era como se eu houvesse perdido o direito de ir e vir, que agora tinha outro significado. A viagem da magia das letras descoberta na cartilha “A casinha feliz”. A formação das frases, a leitura dos rótulos, meu deslumbre pelas placas de endereços nas ruas onde passava nos outdoors, nos anúncios das lojas, nas capas dos livros, enfim o gosto pela leitura tinha se especificado aos romances, as histórias envolventes dos livros de minha madrasta, professora de português, faziam com que eu perdesse horas naquele mundo de tantas palavras.
Meu irmão nasceu, e minha boneca das tardes de domingo havia se tornado um bebê de verdade, que chorava e ria, que tinha fraldas para trocar e lavar, mamadeira para dar. O tempo encurtou, mas meu desejo era terminar minhas leituras, a curiosidade pelo desfecho de cada história fazia com que a luz do meu quarto ficasse a noite toda ligada. Isso fez com que meu pai limitasse minhas leituras aos livros de gramática, geografia, história, ciências e matemática, disciplinas dadas na sala de aula.
Tudo que eu havia lido era guardado com precisão e sempre fantasiava com as coisas que iam acontecendo no meu dia a dia. Mudei de colégio quando fui morar com meu pai, novos professores, novos colegas. O tempo ia passando e o desejo pelos livros sumiu. O fato de agora só ler sobre coisas que eram cobradas nas avaliações contribuíram. A professora Rita, da quarta série do ensino fundamental guiou-me a duas coisas que gostei, apesar de nem sempre fazer bem. Conheci o livro “Oficina de texto”, histórias com temas livres para desenvolver, textos para ilustrar e colorir. Tomei gosto pela coisa, e na maioria das vezes, em casa, no meu diário cultivava esse aprendizado. A outra coisa que me encantara foram as formas de expressar, através de dramatizações com meus colegas, os textos do livro de português.
Não gostaria de ter abandonado meu hábito de ler. Minhas leituras sobre o mundo não vieram das coisas que li, mas das coisas que via e vivia. Ainda hoje procuro reabilitar-me a essa prática, pois acredito que só assim poderei ver através dos olhos do outro, e ponderar minhas opiniões através das de outras pessoas, tornando-a crítica, mas fundamentada em outras experiências e não apenas nas minhas.

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