quarta-feira, 2 de maio de 2012


Filhas da Maré

Guerreiras na luta pela sobrevivência

Por Prisciane Rodrigues
Lorena Soares   


Praia de Itapema a 21 km de Santo Amaro, em meio a casas com ambientes rurais, existem ainda mulheres, hoje idosas, porém lúcidas e determinadas a contarem suas histórias de trabalho intenso na maré.
Três mulheres, semelhantes de garra e luta para sobreviverem e criarem os filhos. Três vidas independentes que se cruzam em tempos diferentes no mesmo mar, na mesma areia, na mesma terra e na praia.


Dona Maria de Lourdes Santana, conhecida como Dona Chiquinha, 81 anos, nasceu e foi criada em Itapema, filha de pescador e marisqueira, que também plantavam em roça para garantirem o sustento familiar. Cresceu na mesma lida dos seus pais, trabalhando na roça e mariscando. Não aprendeu a ler nem escrever, embora tenha
frequentado à escola, diz ter sido uma criança travessa de apedrejar passarinho e bater em meninos e que “era virada, naquele tempo era a pena e o tinteiro, eu derrubava a tinta, as letras não entravam na cabeça, se insistisse demais eu ficava era doida”.
Teve nove filhos, duas de mesmo pai e os outros de pais diferentes, porém nunca dependeu de homem para seu sustento, dos pais de seus filhos só ouvia promessas que não eram cumpridas. Muitas dificuldades foram enfrentadas por Dona Chiquinha, certa vez quando gestante foi mordida por cobra e a criança veio a óbito com treze dias de vida.
Seus partos eram sempre feitos por parteiras, que também moravam em Itapema. Não conheceu os métodos contraceptivos, percebia a gravidez pela falta das regras, como se refere ao período menstrual. Pariu seu filho caçula aos 40 anos, e depois entrou na menopausa. Em nenhuma das gestações ela teve acompanhando médico. “Naquele tempo a mulher tinha que tomar remédio de folha para botar fora, aqui teve uma que ficou mal, passou quinze dias internada em Santo Amaro, quando voltou foi com a criança no caixãozinho, aí levaram para Saubara, eu nunca tomei nada. Ia me prejudicar? Se Jesus me deu, ele ia me dar força para criar”, diz.
Engana-se quem pensa que ela hoje vive sozinha. Viúva? “Não, eles morreu, mas aquele que passou por aqui perto é meu marido. Ficar sem pai e sem mãe [...] ia ficar sem meu companheiro? Eu é que não era! Sabe o que é ficar vinte e quatro horas sozinha dentro de uma casa? Só se fosse o diabo nos inferno! E nem ele quer ficar, que sai pra atentar o mundo”.
Criou seus filhos com leite materno, papa de farinha (quando tinha) e ao completarem seis meses, se alimentavam com escaldado de peixe ou frutos do mar. Farinha era o principal alimento depois do marisco, porém nem sempre era acessível ao povo, pois quando o preço era elevado, a compra do produto tornava-se difícil. Apesar da alimentação não ser muito variada e por vezes escassa, as crianças cresceram fortes e saudáveis.
Dona Chiquinha mariscava durante o dia e em noites de lua cheia. Até no período da gravidez ela não parava de trabalhar, quase paria uma de suas filhas mariscando, foi levada para ter a criança e o produto de seu trabalho do dia foi furtado
por outra marisqueira, que trabalhava junto. Nada tinha em casa para alimentação e “nem um tostão para comprar o gás para acender o bibiano”, como chama o candeeiro.
Ia a pé de Itapema à Saubara para vender o marisco e a noite quando chegava, retornava para a maré. Quando não mariscava, trabalhava nas plantações, pegava água na fonte para fornecer aos veranistas e assim receber algum dinheiro.
Sua irmã materna tentou tomar a casa que morava, mas como Itapema era como uma fazenda, cujo havia um proprietário que permitia aos moradores construírem suas casas, foi orientada a permanecer no terreno. “Fui pro mato tirei pau, carreguei, as forquilha, cheguei, armei um rancho, com dois quartinho, uma cozinha, [...] sentei-lhe a enxada cavei barro, o menino aqui [...] me deu o jegue, ele vinha na frente e eu atrás com a bacia cheia de barro, no dia de fazer esse barro não sabia fazer com a enxada, fiz com as mão, cabá tapei toda, depois de tapada fiz um barro mole reboquei toda. A senhora fez sozinha? “ Sozinha não, eu e Deus”. Foi nessa tapera que viveu e abrigou seus filhos, por muitos anos.
Dona Chiquinha, mesmo tendo uma vida difícil, jamais reclamou de suas condições financeiras. Sempre sorrindo, ainda possui seus próprios dentes apesar da idade. Mariscos têm cálcio que fortalecem dentes e ossos. Ela é saudável, não toma remédios para controlar pressão arterial, nem glicose, às vezes algum comprimido para dor na coluna, que toma por conta própria.
Atualmente há mudanças em sua casa, pois o barro e as forquilhas deram lugar a tijolos e blocos, seu fogão é a gás, contudo, ainda utiliza fogo a lenha, “por costume”, diz. É uma senhora simpática e agradável, às vezes meio nostálgica, de marejar os olhos ao relembrar o passado e as dificuldades pelas quais passou.
Diz-se muito grata a Deus por ter dado braços e pernas sadios e pelas boas vistas que sempre as permitiram trabalhar. Hoje, a marisqueira tem ordenado, é aposentada pela pesca. Foi alguém em sua porta propor o pagamento de uma taxa pela aposentadoria. Seu genro combinou com os filhos dela para ajudarem na quantia, “seiscentos mirreis”. Enfim conseguiram aposentá-la.
Ao redor de sua casa tem um grande terreno, com algumas plantações, e uma extensa camada de cascas de mariscos, catados ao longo de sua vida. A brancura das
cascas em contraste ao marrom do solo e o verde das plantas, dão um belo efeito visual ao ambiente.


Das marisqueiras da época de Dona Chiquinha, só restaram ela e Dona Nocita (83 anos), “as outras, Deus levou”, diz.
Dona Nocita Aleluia Mesquita de Cerqueira nasceu em Saubara e aprendeu desde os oito anos de idade a mariscar. “Aprendi a mariscar com minha mãe e com a vida, catava fuminho (bebe fumo), sururu, tirar ostra, essas coisas da maré eu sei tudo”.
Foi morar em Itapema aos 19 anos, casou aos 21, já tendo seu primeiro filho. “Vim pra cá com dezenove anos porque não aguentava mais trabalhar na Saubara e continuei a trabalhar do mesmo jeito.” Ajudava o marido na lida da roça e continuava a mariscar, teve oito filhos, mas atualmente mora sozinha. Completamente submissa diferente de D. Chiquinha, ela diz que ele não a deixava nem cortar os cabelos.
“Eu usava forquilha de pau com lascas de bambu, rede velha e o fogo embaixo para secar camarão”, diz. Com o tempo, isso estragou suas vistas, atualmente ela está operada de cataratas, não marisca mais, porém encontramo-la tratando baiacu, e ela nos explicou com muito cuidado e habilidade, como não deixar o fel vazar e envenenar a
carne, (o baiacu é um peixe temido por muitos por ter um fígado venenoso e poucas pessoas saberem tratá-lo) ainda vivos na bacia, eles se rebatiam e ela brincou “não sei quem quer morrer, quer é viver.”.

A história das duas se converge com a lida na roça, nos trabalhos árduos para criar os filhos, até mesmo no modo de alimentá-los, as crianças foram amamentadas e ainda bebês por volta dos seis meses comiam escaldados de baiacu ou mariscos.
Viuvou aos 50 anos, e ficou recebendo pensão por morte do marido. Continuou a mariscar. Não casou novamente. “Eu não quis homem para maltratar meus filhos”, diz. Ela não conseguiu se aposentar, e hoje vive com um salário mínimo.
Assim como D. Chiquinha, D. Nocita não foi alfabetizada, mas as histórias nesse ponto se diferem, pois ela não teve acesso à escola por falta de condições financeiras, sua mãe criara os filhos sozinha, e quando foi colocá-los na escola a professora exigia farda e seu pai não quis pagar. Nem ela, nem nenhum de seus irmãos foram alfabetizados. “Não tenho vergonha de dizer por que foi coisa da vida”.
Atualmente tem duas casas em Itapema, uma ela aluga para veranistas, a outra ela mora sozinha, porém acompanhada por galos, galinhas e passarinhos. Não aparenta saudades do falecido e nem se queixa por viver só. Um de seus filhos reside em Itapema e sempre aparece para vê-la. Não tem problemas de coluna, pressão ou açúcar, mas usa óculos escuros, para amenizar a claridade, já que está operada de cataratas. Apesar da solidão, Dona Nocita é sorridente e aparentemente uma senhora feliz.
“Perto daqui nesse bar, aí do lado, mora Suzana, ela também é marisqueira, agora ela também não está mariscando por conta de um acidente de moto, mas eu mariscava com a mãe dela, e depois que meu marido morreu fiquei tratando baiacu com ela”, informa.
Suzana na verdade chama-se Maria Inês de Barros Souza, é a marisqueira mais nova das três. “Esse seria meu nome de batismo, mas quando foram me registrar, a mulé do cartório disse que tinha uma cachorra com esse nome, aí minha madrinha colocou Maria Inês, mas aqui só me chamam de Suzana”, diz. Aprendeu o ofício com sua mãe quando tinha oito anos. Tem 46 anos e ainda trabalha na maré. Entretanto, está encostada pela pesca atualmente devido a um acidente de moto, no qual machucou seu pé esquerdo.
Benefícios como esse não eram possíveis à época das mais velhas, pois agora com uma contribuição em cima do valor comercializado, é possível receber além do auxílio-doença, salário maternidade e aposentadoria. D. Suzana, ressalva ainda que recebe nos períodos em que não é possível mariscar, “ os tempos são outros”.
“Quando não vou ali, parece que me falta alguma coisa”, diz ao apontar a maré.
Apesar de ser mais nova e ter vivido em tempos menos difíceis que Dona Chiquinha e Dona Nocita, Suzana também não aprendeu a ler nem escrever. Marisca sempre e vende em Itapema para o Hotel Enseada do Caeiro e por encomenda a pessoas de Salvador, Feira de Santana, Santo Amaro e de outras localidades que procurem frutos do mar.
Tem três filhos homens, mora junto com o companheiro, que é pescador e caseiro lá em Itapema mesmo. Em sua casa, complementa a renda vendendo bebidas e cigarros. “O movimento só é melhor no verão, porque no frio as pessoas não frequentam muito a praia”, diz Dona Jandira, marisqueira e amiga de Suzana.
Suzana é uma pessoa séria e meio tímida, mas uma coisa ela deixa transparecer bem que é seu amor pelo que faz. “Eu adoro mariscar”, diz. E assim ela parece feliz.
Por toda parte de Itapema é possível ver que a rotina de mariscar é constante, e também disputada, porque vem marisqueiras das praias vizinhas e até mesmo, veranistas para usufruir da bondade natural e diversidades em mariscos.






Nenhum comentário:

Postar um comentário